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Setorial Negra: solidariedade à cantora negra Fabiana Cozza

No começo do mês de junho, fomos surpreendidos com mais uma notícia negativa acerca do ultra-identitarismo que tem contaminado o movimento negro brasileiro e mundial. A cantora paulista Fabiana Cozza, mesmo sendo escolhida pela família de Dona Ivone Lara para representar a eterna sambista no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro”, foi atacada pelas redes sociais por não ser “negra o suficiente“.
Os ataques dos grupelhos pós-modernos foram motivados supostamente pelo fato de que a negra Fabiana Cozza não possui uma coloração de pele tão escura quanto a da já falecida Dona Ivone Lara. Num ato de total desequilíbrio das coisas, sem conhecer a relação artística e de amizade das duas cantoras, ignorando abertamente a vontade da própria família de Ivone Lara, e atropelando a negritude de Fabiana Cozza, esses grupos fizeram uma intensa campanha contra a escolha de Fabiana para o papel de Ivone Lara.
Infelizmente, atendendo a conselhos de amigos, e evitando um mal maior considerando o radicalismo doentio desses grupos pós-modernos, a cantora Fabiana Cozza acabou renunciando do papel de Dona Ivone Lara. Tudo pelo fato dela não ser “preta retinta” como disseram nos comentários da página oficial da sambista paulista.
Nunca é demais lembrar que grandes camaradas comunistas eram negros de pele “menos escura” (ou “não retinta“): Angela Davis e o próprio Comandante Marighella, por exemplo. É evidente que a luta contra o racismo não passa pela tonalidade da cor da pele. Isso inclusive reforça estereótipos e gera outras consequências que a verdadeira luta antirracista combate.
Ainda que com atraso, a Setorial Negra da Organização A Marighella – Construção do Partido Revolucionário – manifesta a sua solidariedade à cantora negra Fabiana Cozza! Acreditamos que a luta contra o racismo, fator indispensável da luta de classes no Brasil, fator da grande luta contra o capitalismo, enfim, acreditamos que a luta contra o racismo não passa pela intensidade da cor de pele, mas, sim, passa pela combatividade militante na conscientização do povo trabalhador, bem como no combate propriamente aos verdadeiros atos de racismo. E esse caso abertamente não é. 
Ao contrário, ao atacarem a negra Fabiana Cozza, de forma semelhante ao fascismo, sem direito de defesa e com mentiras repetidas para virar verdade, aqueles grupos jogaram ela numa total invisibilidade, sem ser reconhecida enquanto negra. O que é um absurdo completo! Para nós, Fabiana Cozza é negra! E somos solidários a ela! Vamos defender essa cantora negra que não tem tanto espaço na grande mídia burguesa, essa artista do povo, essa trabalhadora da cultura popular brasileira!
Solidariedade à cantora negra Fabiana Cozza!
Abaixo o pós-modernismo, então primo do fascismo e filho do imperialismo norte-americano! Combater o ultra-identitarismo é fundamental para avançar na superação do racismo!

Segue abaixo a reprodução da carta aberta de Fabiana Cozza sobre o ocorrido:

“Fabiana Cozza dos Santos, brasileira

Nascimento: 16 de janeiro de 1976

Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca

Pai: Oswaldo dos Santos, negro
Cor (na certidão de nascimento): parda

Aos irmãos:

O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.

Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.

Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.

Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.

Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.

Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas…

Ao lado de vocês, irmãos.

Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.

Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.

Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.

Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.

Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.

Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.

Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.

Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.

Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.

Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá.

Fabiana Cozza”