A derrota da esquerda institucional nas eleições municipais de 2024 reflete uma crise estrutural, que ultrapassa escolhas de candidatos, de alianças, propostas e de meros cálculos eleitorais. Ao contrário do que muitos afirmam, essa crise não é consequência direta da moderação programática e da eventual amplitude das alianças (crítica esquerdista) nem somente de uma incapacidade eleitoral de certas figuras populares (crítica conservadora e personalista). O problema é muito mais profundo, está para além das urnas e evidencia o descolamento das forças progressistas institucionalizadas, aquelas aprisionadas na institucionalidade, da realidade material da maioria da população.
Nas capitais, nas médias e grandes cidades brasileiras, em regra, observou-se o cenário eleitoral resumido a dois campos: o da direita tradicional (apelidada de “liberal”, “democrática” ou de “centro-direita” pela grande imprensa burguesa), apoiada pela esquerda institucional aberta ou discretamente, e o da extrema-direita (ligada geralmente ao bolsonarismo, mas não necessariamente dependente de Jair Bolsonaro, algo que deve servir como sinal de alerta).
Exceções raras e a tentativa de justificar o fracasso eleitoral como um simples “erro de estratégia das campanhas”, focando em sintomas (candidatos com forte rejeição, impopularidade de propostas etc.), ignoram o deslocamento mais amplo de um país onde, atualmente, as questões materiais não encontram resposta objetiva no discurso da esquerda. Afinal, o eleitor médio não busca votar em causas abstratas, tais como “mais democracia”, “mais amor (menos ódio)” e outras tantas expressões vazias que têm sido a tônica das campanhas eleitorais majoritárias da esquerda institucional há muito tempo. Ao contrário disso, a preocupação do povo continua sendo sua subsistência (trabalho, salário, moradia, comida, endividamento etc.) e temas centrais do cotidiano social (segurança pública, saúde, educação, economia). A retórica meramente simbólica sobre assuntos nada concretos e a exacerbação das pautas identitárias somente intensificam a caricaturização da esquerda institucional, escancarando a crise programática desta, além da crise geracional dos quadros, da crise comunicacional, enfim, além da própria crise existencial como um todo, tendo sido o resultado eleitoral apenas um reflexo disso, com o acréscimo depressivo de se tratar de uma Nação perdida, sem clareza dos rumos internacionais, e de uma classe trabalhadora cada vez mais embriagada no charlatanismo individualista do empreendedorismo em tempos de uberização do trabalho.
Ante mais um fracasso da esquerda eleitoral, uma das teses sempre repetida que surge, tal como mantra “basista”, é a de que estaria faltando “trabalho de base”. Porém, o fato é que o “trabalho de base” de verdade, contínuo, presencial e profundo, há muito desapareceu, e creditar a derrocada somente a isso é também superficial. Porque, inclusive, a depender do conteúdo programático, a depender dos quadros formadores, a depender das formas comunicacionais, a depender, finalmente, de qual orientação para o trabalho de base que se pretende fazer, o fracasso poderá ser ainda maior no futuro. Aliás, não é verdade que a esquerda institucional não esteja fazendo trabalho de base, bastando perceber que a base majoritária do campo progressista, a qual não é pequena, tem sido doutrinada a pensar de modo liberalizante com foco intenso no identitarismo, algo que se comprova com as eleições nichadas da esquerda institucional no parlamento. Logo, a questão central e preliminar é sobre qual a orientação ideológica do trabalho de base a ser feito.
Mais que isso, há uma incapacidade de notar que a nova era da comunicação tem forçado uma mudança política suficientemente capaz de transformar as redes sociais e os aplicativos de mensagens em espaços de convergência militante entre discurso e prática (entre teoria e ação), devendo nascer uma práxis, seja revolucionária, seja propriamente eleitoral na periodicidade institucional, que constantemente venha a organizar as massas em torno de pautas concretas, objetivas e populares, isto é, em torno de pautas com baixa rejeição da maioria do povo, fáceis de engajamento, e bastante efetivas para o avanço da luta da classe trabalhadora. Do contrário, a teatralização política nas redes sociais e em todos os veículos das campanhas eleitorais promovidas pelo campo progressista seguirá descolada da realidade, proliferando ações meramente performáticas e/ou demarcatórias.
Com mais razão, é preciso destacar que o caminho atual assumido pela esquerda institucional, ao mesmo tempo em que abre uma avenida para incontáveis derrotas nas eleições majoritárias (para o Poder Executivo), garante a manutenção de trincheiras parlamentares nas eleições proporcionais (para o Poder Legislativo). Ou seja, o estilo performático e/ou demarcatório, especialmente com a intensificação de pautas meramente identitárias, é algo que garante os triunfos eleitorais nichados no parlamento. Tão logo, a inviabilização majoritária da esquerda institucional é igualmente um projeto da burguesia (local e internacional, sendo percebido em outros países) e dessa própria esquerda, pois, a priorização dos mandatos parlamentares, sem um projeto real de disputa do poder, objetiva somente a perpetuação do status quo, e não apenas o status quo dominante da sociedade, mas, também, do status quo dominante do próprio campo progressista, isto é, a inalteração de quem o lidera.
Na prática, a eleição de Lula em 2022 foi um suspiro de quem estava sepultado (esquerda institucional) desde o golpe de 2016 e da vitória de Bolsonaro em 2018. Todavia, o suspiro lulista aumentou a miopia da esquerda institucional, sobretudo de suas forças dirigentes, acerca da realidade nacional, passando aquela a acreditar que seria possível a continuidade do “mais do mesmo”. A tática, porém, demonstrou-se demasiadamente equivocada, vide o resultado catastrófico das eleições municipais, com a vitória avassaladora da direita (ou “centro-direita” no falso dizer da grande imprensa burguesa) e, em menor potência, da extrema-direita.
2026, ano das próximas eleições gerais (Presidente, Governadores, Senadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais), caminha, portanto, para ser um momento decisivo com o possível sepultamento definitivo da esquerda eleitoral, caso Lula não consiga sua reeleição, ou com um momento de novo suspiro na sua eventual reeleição. Entretanto, tanto uma projeção quanto a outra não resolve as crises (programática, organizativa, comunicacional, geracional, existencial) da esquerda brasileira. Verdadeiramente, a reedição do suspiro lulista tende a ser mais um momento de lucidez terminal, haja vista que o Governo Federal segue cambaleando e sem apresentar qualquer resultado concreto de fácil agitação popular em sua defesa. E após os resultados eleitorais deste ano, não faltarão “conselheiros” para orientar equivocadamente uma maior inclinação do Governo Lula III à direita (mais ainda), aplicando mais medidas neoliberais e entregando mais e mais cargos às forças políticas vitoriosas dessas eleições municipais, como se isso fosse uma grande solução, esquecendo, por exemplo, que o “grande partido” de direita (ou de “centro-direita” como gosta de frisar a grande mídia burguesa) vitorioso dessas eleições, ora o PSD (Partido Social Democrático), do habilidoso Gilberto Kassab, foi fundado e alimentado no passado com claro apoio dos governos petistas. E não apenas essa legenda, mas outras tantas, embora sejam avalistas da governabilidade petista, igualmente, acabam por sequestrar o próprio Governo Federal numa simbiose extremamente prejudicial para os destinos do Brasil. Ademais, considerando o exposto, pensar o pós-Lula é imaginar um deserto ainda maior de perspectivas.
Por outro lado, visões turvas das forças políticas do esquerdismo seguem a acreditar que a política é uma automática expressão da vontade, idealizando mudanças na correlação de forças com um passe de mágica por simples mobilizações sociais, em mais uma reprodução de ações performáticas e/ou demarcatórias. Destarte, é preciso lembrar que se o resultado da esquerda mais institucionalizada e governista (PT, PCdoB, PSOL, PDT, PSB) foi ruim, não sendo necessário expor números, inclusive porque é necessário analisar caso a caso (algo que foi feito para publicar o presente balanço de avaliação do quadro nacional), o resultado do esquerdismo (PSTU, UP, PCB, PCO etc.) foi, pela enésima vez, irrelevante, reforçando a linha assertiva de que, na atualidade brasileira, um movimento revolucionário comunista deve intervir nas grandes legendas para buscar avanços táticos e acúmulos estratégicos.
Assim, diante da conjuntura nacional profundamente adversa e desesperadora, diante de um contexto internacional extremamente preocupante e beligerante, o papel dos Comunistas do Brasil é construir o Partido Revolucionário, acumulando forças e concentrando esforços nas lutas concretas do cotidiano do povo brasileiro, a fim de configurar uma nova vanguarda a partir de um movimento patriótico e popular, que levante novamente a luta pela libertação nacional rumo ao Socialismo, e que tenha capacidade de superar o social-liberalismo, então hegemônico na esquerda, evitando, por outro lado, o patológico esquerdismo. A tarefa dos comunistas, portanto, ante as crises da esquerda, está para muito além das urnas.
O Comando Nacional da Organização A Marighella – CPR.
Brasil, 29 de outubro de 2024 (ao centésimo décimo terceiro ano de imortalidade do Comandante Carlos Marighella).