No dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que flexibiliza o acesso e a posse de armas de fogo. O Decreto 9.685/2019 retirou o poder discricionário da Polícia Federal em definir quem teria “efetiva necessidade”, ou seja, quem teria uma possível motivação para conseguir o direito à posse de armas. Na prática, o decreto de Bolsonaro justifica “efetiva necessidade” a todos os habitantes de todos os estados brasileiros, pois todas as unidades federativas apresentam índices anuais com mais de dez homicídios por cem mil habitantes, então expressão do novo decreto. Além disso, o decreto aumentou o prazo para renovação do certificado de registro de arma, antes era de 5 anos, agora é de 10 anos. Outras mudanças foram a obrigatoriedade de um cofre (ou local seguro com tranca) para armazenamento da arma em residência habitada por criança, adolescente ou deficiente mental, e a possibilidade prática de cada brasileiro possuir 4 ou mais armas. Em verdade, o decreto somente facilita quem possui condições financeiras de possuir uma arma, somente ajuda quem já tinha ou tem condições econômicas de possuir uma arma com todos os requisitos burocráticos que seguiram no novo decreto, ou seja, é um decreto para as elites dominantes.
Desde 23 de outubro de 2005, ainda no primeiro Governo Lula, tem sido fortalecida uma bandeira pró-arma na sociedade. Afinal, naquela data no referendo sobre o Estatuto do Desarmamento foi decidido pela maioria da população brasileira (59.109.265 eleitores (63,94% dos votantes)) que o país não deveria caminhar para uma política plena de desarmamento civil. Assim, o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), que determinava a proibição da comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional (ressalvadas as exceções legais), foi enterrado pelo referendo popular. Contudo, os governos petistas apelaram no cotidiano das políticas públicas e em articulações no judiciário e nos aparatos policiais para obstaculizar ao máximo o acesso e a posse de armas. De fato, durante o período petista foi missão institucional uma espécie de combate às armas. Por outro lado, os defensores do direito à posse de armas acumularam força social e espaço nos parlamentos pelo país, em especial no Congresso Nacional, consolidando uma bancada apelidada por “bancada da bala”, e colocando como tarefa central o respeito e o cumprimento da vontade popular sobre o tema (expressa no referendo de 2005).
O discurso desses setores, ora reconhecidamente reacionários, era um discurso fácil, um nítido discurso de fácil encantamento às massas populares. Obviamente o maior elemento facilitador desse discurso é a contradição notória entre a farsa propagada pelo PT (Partido dos Trabalhadores) de que o desarmamento solucionaria a insegurança da população brasileira, ou reduziria a criminalidade drasticamente, e o gritante contraste com a realidade. A pauta da segurança pública está, ao lado da corrupção, como uma das principais preocupações do povo brasileiro. Evidentemente que o desarmamento muito pouco alterou o cenário da violência urbana, basta lembrar que no último ano de Dilma Rousseff, em meio ao golpe de 2016, segundo o Atlas da Violência 2018 (divulgado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), o país registrou 62.517 mortes violentas intencionais, uma taxa de 30,3 mortes a cada 100 mil habitantes, o pior índice de nossa história, algo equivalente a 30 vezes a taxa de assassinatos do continente europeu, ou ainda o equivalente ao número de mortes provocadas pela bomba atômica em Nagasaki (Japão). É esse o legado petista na segurança do povo. E não por acaso o bolsonarismo cresceu nas massas populares com uma retórica ultraconservadora.
Outra marca da falência do Estatuto do Desarmamento é a proliferação do comércio ilegal de armas. Hoje no Brasil existem 7,6 milhões de armas ilegais em circulação. A maioria dessas encontra-se nas mãos de delinquentes, os “bandidos”, sejam os do narcotráfico, sejam os das quadrilhas de roubo, de sequestro, e dos mais variados tipos penais. Cumpre frisar que não há nada de revolucionário na visão romântica e pequeno burguesa de defesa indiscriminada de criminosos profissionais, como se fossem meras vítimas das mazelas da sociedade capitalista. Uma visão idiotizada agitada por supostos “defensores dos direitos humanos”, figuras presentes na esquerda socialdemocrata hegemônica de nosso país, o que tem gerado uma caricatura muito presente no imaginário popular sobre o que seriam os militantes de esquerda. Porém, os revolucionários devem afirmar categoricamente que a maior vítima da sociedade capitalista é a classe trabalhadora explorada diariamente pela classe burguesa. A mesma classe trabalhadora ora assaltada pela burguesia em seu local de trabalho, ora assaltada por delinquentes profissionais nas ruas e nos lares.
Sem confundir com as exceções de rebeldes primitivos ou rebeldes circunstanciais (ou ainda “bandidos sociais”), que possuem em Lampião uma expressão singular brasileira, o Comandante Carlos Marighella, em seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano, já havia diferenciado o militante revolucionário dos impopulares bandidos de todos os tipos, ora a numerosa parcela banditista do lumpesinato: “(…) O guerrilheiro urbano é um homem que luta contra uma ditadura militar com armas, utilizando métodos não convencionais. Um revolucionário político e um patriota ardente, ele é um lutador pela libertação de seu país, um amigo de sua gente e da liberdade. A área na qual o guerrilheiro urbano atua são as grandes cidades brasileiras. Também há muitos bandidos, conhecidos como delinquentes, que atuam nas grandes cidades. Muitas vezes assaltos pelos delinquentes são interpretados como ações de guerrilheiros. O guerrilheiro urbano, no entanto, difere radicalmente dos delinquentes. O delinquente se beneficia pessoalmente por suas ações, e ataca indiscriminadamente sem distinção entre explorados e exploradores, por isso há tantos homens e mulheres cotidianos entre suas vítimas. O guerrilheiro urbano segue uma meta política…“.
Todavia, não deixa de ser uma tarefa preciosa e indispensável agitar e propagar que sim a violência é um dos grandes e piores sintomas da sociedade capitalista. Fazer isso sem permitir uma caracterização ridícula de “defensor de bandidos”, isto é, fazer isso sem defender delinquentes, é uma fundamental via para dialogar com o povo trabalhador sobre as limitações das respostas da ordem burguesa a um problema inerente a essa. O capitalismo não consegue garantir a segurança de sua sociedade, ao contrário, o capitalismo cria condições que fomentam a insegurança. Somente o Socialismo poderá oferecer segurança total ao povo brasileiro, pois com igualdade de oportunidades, com equiparação de direitos, com economia planificada, com pleno emprego, com moradia digna para todos, sem miséria, sem fome, sem riqueza ostensiva nas ruas em contraste com a massiva pauperização, com serviços sociais de qualidade, com tecnologia avançada no combate ao crime, com inteligência preventiva e repressiva, enfim, com todo o porvir socialista, não haverá delinquência. E os remanescentes serão severamente punidos, claramente com leis mais rígidas e eficientes do que as atuais da ordem burguesa.
Entretanto, verdadeiramente, hoje em um país de desigualdades profundamente abissais, em um país de falência social como o nosso, acreditar que leis duras sejam o suficiente para acabar com a criminalidade é tão ingênuo quanto acreditar que o desarmamento acabaria com a circulação de armas e com a violência. Não se pode olvidar a materialidade histórica do gigante número de homicídios e de armas ilegais em circulação após 13 anos de publicação do Estatuto do Desarmamento. Nem se pode ignorar a realidade internacional comparada com exemplos de países capitalistas que adotaram penas duras e seguem com uma alta taxa de criminalidade (a pena de morte na maioria dos estados dos EUA, por exemplo, não reduziu a criminalidade).
Antes de qualquer sustentação que justifique a alta taxa de criminalidade norte-americana por conta da facilidade da posse e do porte de arma de fogo, vale recordar que a China, uma nação a caminho do Socialismo, dirigida pelo Partido Comunista desde 1949, é o terceiro maior país com armas nas mãos de civis (49 milhões de armas), sendo um território com uma legislação menos restritiva, e ao mesmo tempo, é um dos países com as mais baixas taxas de criminalidade e de homicídio (cerca de 0.62 por 100.000 residentes). Além disso, mais de 90% da população chinesa manifestou abertamente a sua satisfação com a segurança pública nas últimas pesquisas.
Importa declarar que as argumentações desarmamentistas, além de equivocadas, conduzem o campo progressista a um isolamento caricato nessa época em que manifestamente um surto de violência tomou conta do país. Uma das sinceras argumentações companheiras diz respeito a um possível aumento de feminicídios e de outros crimes de ódio, tais como assassinatos por motivo homofóbico ou racista, em virtude da facilitação do acesso às armas. Porém, os alarmantes índices criminais desses tipos de homicídios não pararam de crescer com a chegada da lei do desarmamento. O levantamento do “Mapa da violência no Brasil 2012” (FLACSO e Instituto Sangari) mostrou que de 1980 a 2010, o número de mulheres assassinadas cresceu 217,6%. Em 1980, 1.353 mulheres foram mortas por motivos de opressão de gênero, em 2010 foram mortas 4.297 por esses mesmos motivos, o que representa 4,4 mulheres assassinadas a cada 100 mil (o sétimo maior índice do mundo). A taxa de negros vítimas de homicídios era de 32,7 por 100 mil em 2006, já em 2016 era de 40,2 a cada 100 mil, isso com 13 anos de desarmamento legal. O número de LGBTs mortos por motivação de ódio também triplicou nesse período. Tudo isso demonstra que a opção do desarmamento não mudou o cenário de violência, que ao contrário segue a aumentar.
Outra argumentação desarmamentista é a de que as execuções políticas cresceriam. Não faz muito que Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, de mandato combativo e popular, foi executada junto com seu motorista Anderson Gomes, ao que tudo indica pela milícia carioca. O caso ainda não foi concluído, e evidentemente as armas do crime não eram registradas, eram armas ilegais, por óbvio. Também são com armas ilegais a marca dos assassinatos no campo por parte de jagunços de latifundiários do agronegócio contra trabalhadores rurais em luta por terra e por direitos trabalhistas, ou contra defensores do meio-ambiente, ou contra indígenas e quilombolas. Portanto, o desarmamento não mudou em nada algo que não pode ser congelado por lei: a luta de classes.
E assim, enquanto a esquerda não compreender a indispensabilidade de ampliar as condições de combate da classe trabalhadora, e de potencializar elementos de autodefesa e de resistência real, seguiremos acumulando derrotas e empilhando corpos executados pela burguesia e por seus mafiosos funcionários. O pacifismo idealista é um inimigo da classe trabalhadora, e tem historicamente colocado em risco a segurança de militantes desde o fim da ditadura militar. Por mais piegas e ululante que possa parecer, nesses dias de hegemonia do pensamento pós-moderno (verdadeiramente contrarrevolucionário) no campo progressista, cumpre asseverar uma lição histórica: revolucionário não deve ter vocação para ser vítima.
O Brasil está entre os 5 países com mais risco de sequestro do mundo. O país registrou 8 desaparecimentos por hora entre 2007/2017. Foram 693 mil casos nesse período, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Brasil tem a terceira maior taxa de roubos na América Latina, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre a violência na região. Dados de 2011 apontam uma taxa de roubos a cada 100 mil habitantes no Brasil de 572,7. O país também registrou 7 casos de latrocínio por dia entre 2010 e 2017, a taxa de ocorrência desse crime, que é roubo articulado com morte, aumentou 58%. Não se pode dizer que o desarmamento seja culpado pelo crescimento desses dados, inclusive seria demasiadamente forçoso afirmar isso. Mas, também, com todos esses dados, beira ao escárnio quem ousa falar que o desarmamento diminuiu a violência no Brasil. A ladainha de que o país ficará mais perigoso e inseguro com uma possível revogação do desarmamento, que não aconteceu ainda, é uma retórica que ignora a realidade do caos em que vivemos.
A verdade é que nem o estatuto do desarmamento petista nem o decreto falsamente pró-armas de Bolsonaro, de fato, respondem ao problema da insegurança do povo.
O decreto bolsonarista prossegue a imposição de condições legais que permitem a posse de armas somente para membros da classe burguesa e das mais altas camadas médias. Bolsonaro prometeu armas e segurança, só não disse que isso seria mais uma exclusividade das elites dominantes. Claramente o decreto de Bolsonaro, então pouco efetivo ao povo, visa atender aos interesses da indústria bélica; e pior, visa pavimentar o ingresso das grandes empresas imperialistas do ramo no Brasil. Da mesma forma, é perceptível, principalmente depois dos fortes indícios da relação das milícias cariocas com a família Bolsonaro, de que esses setores criminosos serão beneficiados com a facilidade concedida aos ricos para aquisição de armas.
É dever revolucionário, em um país capitalista, neocolonizado e amplamente inseguro, e mais ainda nesta quadra histórica de apelo das massas pelo acesso às armas, enfim, é dever apropriar-se do clamor popular pelos fundamentais direitos de autodefesa, de sobrevivência, e de resistência, seja contra a delinquência do cotidiano, seja contra as investidas do crime organizado, seja contra eventuais fascistas descontrolados ou capangas da burguesia, seja contra a política repressiva do Estado burguês com sua reconhecida letalidade classista e racista em nosso país.
Igualmente é nosso dever explorar ao máximo o fato de que o decreto de Bolsonaro é uma farsa (é mais uma fake news!), pois, mudou quase nada do Estatuto do Desarmamento. E por que não mudou? Porque arma no Brasil para civil deve ser reservada aos cuidados das elites dominantes e de suas milícias de proteção. O povo brasileiro precisa saber que Bolsonaro é mais um funcionário despachante dos ricos e poderosos, e fez um decreto facilitando a posse de armas somente desses, enquanto o povo segue desarmado no sofrimento e na agonia da insegurança generalizada das cidades. A burguesia segue armada, e o povo trabalhador?
Por isso, é nosso papel lutar para ampliar as liberdades democráticas ao máximo! O direito de posse e de porte de arma é um direito fundamental do povo para proteção contra crimes, contra injustiças e contra agressões diversas. Se o rico já tem, o trabalhador precisa ter! Quanto maior a liberdade democrática nesse tema, especialmente mais acumulativo será aos revolucionários. Não há floricultura nem jardim suspenso em nosso caminho.
Somente o Socialismo conduzirá a um tempo melhor para se viver, com paz real, plena justiça social e verdadeiras liberdades. No entanto, o povo deseja saídas imediatas, antes da vitória final, para respirar um sentimento de segurança, e isso está em consonância com a luta estratégica, portanto devemos abertamente apoiar as reclamações populares pelo direito de possuir e portar arma para defesa pessoal, familiar e/ou coletiva.
Por políticas de democratização e popularização do acesso às armas!
Por uma legislação verdadeiramente acessível à posse, e pela liberação regulamentada do porte!
Se queres a paz, prepara-te para a guerra!
“Deixemos a burguesia hipócrita ou sentimental sonhar com o desarmamento. Enquanto houver no mundo oprimidos e explorados, devemos exigir o armamento geral do povo e não o desarmamento. Somente o armamento do povo assegurará plenamente o futuro da liberdade. Somente ele abaterá definitivamente a reação. Somente com esta reforma que a liberdade, deixando de ser privilégio de um punhado de exploradores, tornar-se-á realmente o patrimônio de milhões de trabalhadores.”
Lenin. O Exército e a Revolução, 15 de novembro de 1905.
Brasil, 11 de fevereiro de 2019; ao centésimo oitavo ano de imortalidade do Comandante Carlos Marighella.
A Secretaria de Comunicação da Organização A Marighella – CPR.